O que se segue é um resumo da palestra do Dr. René Castelein para o Scoliosis Day 2025, realizado e comentado por mim, publicado com autorização do autor.
Desde o século XIX há registro da tridimensionalidade da escoliose. Adams, o mesmo que dá nome ao teste que utilizamos até hoje, publicou um trabalho que discorre sobre isso. Em 1904 Nicoladoni também publica texto afirmando a mesma coisa. Mas, com o advento dos Raios X em 1895, aos poucos, todos começaram a valorizar a projeção de um volume de três dimensões em um só plano e a tridimensionalidade da escoliose começou a ser esquecida. Foi recuperada possivelmente nos anos 1970 com a publicação do estudo de Perdriolle (La Scoliose, son étude tridimensionnelle), mas levou ainda alguns anos para se impor definitivamente.
Manoel Rigo utiliza o trabalho de Perdriolle na análise biomecânica e prognóstico das curvas escolióticas que examina, e acredita que estes conhecimentos são ignorados pela classe médica em geral, porque no histórico do estudo dessa deformidade, a cada vinte anos se esquece tudo que se pesquisou antes para se começar do zero.
A deformidade escoliótica é devida sobretudo ao disco
Frequentemente os pesquisadores afirmam que o que se deforma é o osso. Para René Castelein é o disco. Em trabalhos de análise de imagens ele constatou que o comprimento da coluna ao longo da região anterior dos corpos é muito maior que o comprimento da região posterior. Esse fenômeno é conhecido como RASO (relative anterior scoliosis overgrowth)*. Ao medir somente a altura da região anterior e posterior do corpo vertebral em colunas escolióticas, verificou que o corpo vertebral tem sempre uma parede anterior menor, enquanto ao medir o disco, a altura da região anterior é muito maior. Portanto, a estrutura que parece ser a responsável pela deformidade da coluna no plano sagital parece ser o disco e não o corpo vertebral. Ele concorda que com o agravamento da deformidade o osso pode se deformar contribuindo para o RASO, mas de início ele é 100% devido ao disco.
Em imagens de ressonância magnética, feitas no mesmo dia com meia hora de intervalo com um indivíduo com escoliose, uma em posição relaxada a outra em posição levemente corrigida, nota-se que os núcleos migram para o centro. Assim, Castelein considera que o tratamento conservador da escoliose é basicamente medicina regenerativa do disco.

Fig 1
Na Fig 1, a imagem de 1904 é de Nicoladoni, onde o disco aparece levemente deslocado para a convexidade. Acima, à direita, imagens do trabalho de Castelein onde o núcleo pulposo em verde move-se ligeiramente para o lado oposto ao inicial, mas permanece excêntrico, mesmo na posição de leve correção. Abaixo uma imagem de um disco de um experimento em laboratório no qual foi provocada uma escoliose em um animal, onde se vê, após algum tempo, a migração do núcleo para a convexidade, o que é de se esperar, mas também se vê uma espécie de tecido cicatricial que provavelmente é o que causa certa contratura na coluna, o que impede que o núcleo retorne à sua posição de origem. Isto é o que explica a necessidade de se iniciar um tratamento conservador o mais cedo possível em uma curva escoliótica, antes que ela se enrijeça e não mais permita que o núcleo se centralize.
O disco não é apenas um amortecedor, papel do núcleo pulposo, mas é também um ligamento com fibras cruzadas em todos os sentidos dentro do anel, unindo dois corpos consecutivos, impedindo escorregamento entre os corpos vertebrais durante movimentos em qualquer plano. Se o ligamento falhar, a coluna desmorona e se deforma. As duas únicas deformidades possíveis na coluna são a escoliose e a cifose.
*sobre este assunto há post publicado neste mesmo blog, veja IIICBE Elucidando aspectos terapêuticos no tratamento da escoliose
Descompasso na maturidade óssea e ligamentar – fator de progressão da deformidade
A doença de Osgood-Schlatter comum em meninos praticantes de esportes (corrida, futebol, saltos) é denominada erroneamente “osteocondrite da tuberosidade tibial” segundo Amatuzzi ( Joelho: articulação central dos membros inferiores pg 312). Castelein a interpreta como um descompasso entre maturidade óssea e maturidade muscular. O músculo com força de um adulto traciona o tecido ósseo ainda não totalmente amadurecido. Na imagem radiográfica, que é suficiente para o diagnóstico, se observa uma descontinuidade na imagem do tecido ósseo na altura da inserção do quadríceps com a aparição de um ou mais fragmentos avulsos. Com o tempo estes podem aumentar de tamanho, fundirem-se entre si ou com a própria tuberosidade tibial.

Fig 2
Este fenômeno pode também ser observado durante a adolescência em várias regiões do corpo (Fig2). Na espinha ilíaca, tracionada pelo reto femoral, no epicôndilo medial no cotovelo em jovens jogadores de baseball que podem desenvolver muita força com músculos já maduros frente a uma inserção imatura. Em todos os casos se nota ao raio X uma ossificação incompleta atrás da inserção do tendão, que aparece como se houvesse um arrancamento de uma porção óssea junto ao tendão do resto do osso.
Castelein acredita que o mesmo pode ocorrer durante o desenvolvimento da escoliose idiopática.
Muitos trabalhos falam sobre o disco quando envelhece e degenera, mas pouco se sabe sobre o disco em maturação. Quando muito jovem, o corpo vertebral cartilaginoso conecta-se diretamente às fibras do anel fibroso, todos constituídos por um mesmo tipo de tecido – o conjuntivo. Com o amadurecimento do esqueleto ósseo, a cartilagem do corpo vertebral passa por uma transformação e torna-se osso. Uma vez que as fibras constituintes do anel fibroso, que são verdadeiros ligamentos, passam a se inserir em tecido ósseo, tornam-se mais estáveis do que quando estavam inseridas na cartilagem. Se houver descompasso entre o amadurecimento muscular (que é igual à formação de um volume e força condizentes com um adulto) e o grau de ossificação, temos a inserção de uma estrutura capaz de transmitir muita força de tração inserida em um tecido ainda cartilaginoso em certa medida, o que se torna uma situação de instabilidade evidente.
Em um trabalho feito por Lorenzo Costa e Castelein, foram observadas as apófises em anel dos corpos vertebrais, que são essencialmente um anel ósseo em torno da superfície superior e inferior do corpo vertebral onde o disco se conecta. É um centro secundário de ossificação que não está envolvido com o crescimento longitudinal da coluna. Neste processo, as fibras mais externas do anel fibroso se inserem nesta região, ancorando o disco entre dois corpos vertebrais vizinhos.
Em cortes longitudinais e transversais, descreveram quatro estágios de maturidade (Fig 3):
Estágio 0 – onde não se detecta o ano disco intervertebrbal entre dois corpos adjacentes. el
Estágio 1 – início da ossificação (o anel começa ser perceptível)
Estágio 2 – Ossificação incompleta
Estágio 3 – ossificação completa
Fig 3

Fase 0 Fase 1 Fase 2 Fase 3
Tudo isto foi imaginado para este estudo e para a criação do slide que se segue, que é bem complexo. Mas essencialmente o que se deve apreender é seguinte:

À esquerda o grupo de meninas está representado, à direita os meninos
Na coluna vertical cada vértebra é citada de T1 a S1
A coluna horizontal representa a idade do cliente.
Quanto mais escuro o quadrado que compreende uma determinada vértebra /idade, maior a maturidade daquele anel.
A seguir o que se observou em um grupo de crianças (à esquerda população normal, à direita meninas com escoliose)

Através destes gráficos pode-se ver que em uma população normal, em torno de 18 anos o anel discal mineralizou-se e se fundiu ao corpo vertebral, enquanto que em uma população com escoliose na idade de 18 anos, muitos anéis apofisários ao longo da coluna ainda são imaturos.
Ainda é necessário muito estudo, mas isso conduz a acreditar que certamente há incompatibilidade entre as cargas já maduras e as estabilizações ainda imaturas na coluna.
Nota-se que na população normal, não escoliótica, o anel apofisário basicamente amadureceu de cima para baixo de L5 a T1 em torno da idade de 18 anos, enquanto na população escoliótica, aos 18 anos, com peso corporal já amadurecido os anéis apofisários não são capazes de estabilizar a coluna.
A moléstia de Scheuermann também pode ser considerada da mesma forma: o peso e as forças já maduros aplicados sobra a placa cartilaginosa ainda imatura acarretariam as deformidades que podemos observar nas placas terminais.
Assim, cargas maduras aplicadas sobre coluna com estabilizadores ainda imaturos podem estar relacionadas com as deformidades. Seria necessária muita pesquisa a respeito, mas é um conceito que pode explicar muitas manifestações patológicas.
Seria necessário corrigir também a pósteroflexão?
Ainda com Lorenzo Costa, René Castelein publicou outro estudo onde procura uma resposta a esta pergunta (*).
Este trabalho analisou 10 pacientes, sexo feminino, entre 12 e 16 anos com curvas entre 48° e 60°, Risser entre 0 e 5.
Através de Raios X em pé se obtinham os valores dos ângulos de Cobb da principal curva nos planos frontal e sagital, o grau de rotação da vértebra ápice e das suas vizinhas acima e abaixo também eram obtidos. A seguir foram realizadas imagens de ressonância magnética em posição supina neutra e em posição supina em extensão (com apoio de um calço abaixo do ápice da curva) e os mesmos ângulos foram medidos nas duas posições.
Comparando-se os ângulos na posição em pé, em decúbito neutro (isto é, sem o calço) e em decúbito com o calço:
A extensão reduziu a cifose (medida entre T4-T12), o ângulo de Cobb no plano coronal e a rotação vertebral, em ambas as posições de decúbito, sendo que na de extensão todas as correções foram mais significativas.
Além disso, a forma em cunha dos discos melhorou significativamente e a lateralização do núcleo pulposo reduziu-se para uma posição mais simétrica.
Portanto, este estudo mostra que a intervenção em um plano leva a uma resposta nos outros planos. Mas, como a cifose diminui, podemos considerar também que a quantidade total de deformidade nos três planos não diminui, apenas se transfere de um plano a outro. A maior hipocifose, que representa aumento da deformidade no plano sagital, é cirurgicamente um resultado não desejável, que pode levar a complicações juncionais na zona entre os segmentos fixo e móvel da coluna. A questão é saber qual o efeito isto poderia causar em uma coluna móvel. Em outras palavras, em um tratamento conservador, se poderia procurar corrigir a deformidade coronal e axial (e em consequência restaurar a simetria do disco) às custas de um aumento da retificação torácica?
Difícil responder, afinal não se pode esquecer que extensão torácica pode levar a efeitos negativos como dores cervicais e diminuição do espaço intra torácico para a ventilação pulmonar.
Visto a história natural do equilíbrio sagital, possivelmente a cifose torácica aumentará ao longo do tempo, mas esta é uma hipótese que não foi comprovada. Faltam dados com respeito à persistência ou alterações significativas no plano sagital após o uso do colete e/ou após a adolescência.
De qualquer forma, estas considerações, segundo os próprios pesquisadores, são sobretudo hipotéticas e aumentar a extensão da coluna escoliótica dentro de um colete, por exemplo, não faz parte da prática do dr. Castelein. Assim, creio que também não devem fazer parte de nossa prática clínica em fisioterapia
(*)The three-dimensional coupling mechanism in scoliosis and its consequences for correction
Spine Deform 2023 Nov;11(6):1509-1516.
doi: 10.1007/s43390-023-00732-8. Epub 2023 Aug 9.
Quando começar o uso do colete
Castelein diz ter dificuldades em aceitar os protocolos de se indicar coletes após a constatação de que a curva é progressiva. Nesta espera pode-se perder o melhor momento para o início desse procedimento. Claro que não é possível 100% de certeza, mas baseando-se na experiência pessoal pode-se dizer se há grande chance de evolução. Melhor tratar do que aguardar.
O trabalho de Weinstein publicado em 2013 – “Effects of bracing in adolescente with idiopatic scoliosis” é frequentemente citado como referência sobre história natural da escoliose e a eficiência na utilização do colete em escolioses idiopáticas. Neste trabalho o parâmetro de insucesso no tratamento era uma curva maior de 50° ao final do crescimento (ou indicação cirúrgica antes de maturidade óssea) e sucesso uma curva menor que 50°. O final do crescimento foi considerado em Risser 4 para meninas, Risser 5 para meninos ou Sanders 7. Castelein lembra, com razão, que se conseguimos 48° ao final do tratamento, isso não pode ser considerado um sucesso, porque provavelmente haverá progressão ao longo da vida. Este estudo considera que curvas maiores de 50°levarão a função pulmonar diminuída, mas estudos na universidade de Utrecht demonstram que escolioses moderadas a severas também podem ter impacto na função pulmonar, por comprimir brônquios do lado da convexidade. Há insatisfação com a aparência física, a maioria refere vida familiar normal mas gostariam de que tivessem tido tratamentos disponíveis quando eram mais jovens.
Castelein considera que 30° de curva ao final do crescimento poderia ser considerado bom resultado, ainda que não se tenha certeza sobre o prognóstico. Assim, ele declara não hesitar em iniciar um tratamento com colete em um alguém bem jovem com curva entre 15° e 16° e sinais agravantes de evolução. Nossa experiência nos permite isso. Por exemplo, em uma menina de 9 anos, com uma curva de 15° à direita, com gibosidade e todas as características de uma curva progressiva, por que esperar que evolua para indicar um colete? Infelizmente, são casos que raramente chegam ao consultório. Daí, mais uma vez a importância de triagem precoce.
Colete de uso noturno
Em 2021 Lorenzo Costa et al publica o resultado de uma revisão sistemática sobre todos os estudos sobre tratamento com colete pesquisados na Pub Med até aquela data: “ The effectiveness os different concepts of bracing in adolescente idiopatic scoliosis: A sistematic review and Meta-analysis”.(*)
Constataram nesta revisão que as médias de sucesso foram:
Colete rígido em tempo integral – 73%
Colete rígido noturno – 79%
Colete elástico tempo integral – 62%
Apenas observação- 50%
Nenhum resultado foi significativamente diferente ente os coletes de uso noturno ou de uso em tempo integral. Apenas o colete elástico teve uma eficiência menor.
Em visita à Dinamarca, Castelein entrou em contato com o colete Providence, de uso noturno, onde é a primeira opção no tratamento da escoliose. Na realidade, mesmo que o colete Providence não leve a um bom resultado, os dinamarqueses nem sequer consideram um colete de uso por tempo integral, por estarem convencidos de que o resultado final não seria muito diferente. Atualmente, em seu serviço no Centro Médico Universitário de Utrecht, ele só utiliza o colete Providence.
Este colete é medido e moldado em decúbito. A correção da curva deve ser de ao menos 70-80%. Castelein diz que frequentemente consegue-se mais que isso, até 100%! Ele o utiliza para todas as curvas, mesmo as duplas, com a mesma eficiência. Em curvas mais severas (maiores de 45°) este colete é utilizado para ganhar tempo em pacientes muito jovens, para que se controle a curva até que atinjam uma idade mais favorável para a intervenção cirúrgica. No entanto, ele acredita que a palavra final será dada quando da publicação dos resultados de um estudo que está em curso no Reino Unido feito por um grupo de pesquisadores liderado por Ashley Cole, onde estão comparando o uso da órtese noturna e o de tempo integral. “BASIS Study- Comparing night-time versus full-time bracing in adolescente scoliosis PI Ashley Cole”(**)
(*)The Effectiveness of Different Concepts of Bracing in Adolescent Idiopathic Scoliosis (AIS): A Systematic Review and Meta-Analysis
Lorenzo Costa, Tom P C Schlosser, Hanad Jimale, Jelle F Homans, Moyo C Kruyt René M Castelein J Clin Med. 2021 May 15;10(10):2145. doi: 10.3390/jcm10102145
(**)Bone Jt Open. 2023 Nov 17;4(11):873-880. doi: 10.1302/2633-1462.411.BJO-2023-0128.
Por que haveria maior eficiência no colete de correção noturna?
Ritmo Circadiano (ciclo de 24 horas) de nosso corpo determina diferenças metabólicas em todo o corpo, incluindo, é claro, o disco intervertebral. Há evidentes diferenças na capacidade regenerativa diurna vs. a noturna. É à noite que nossas mentes e corpos regeneram. Talvez o disco se regenere mais eficientemente à noite.
Fatores mecânicos: discos completamente reidratados à noite são provavelmente corrigidos mais eficientemente.
Conclusão:
Escoliose não é apenas uma afecção pediátrica, é um fardo de moléstias para toda a vida, autoimagem perturbada, dores nas costas, consequências cardiopulmonares – não é necessário curvas de 80 a 100° para que problemas pulmonares se manifestem.
Tecido-alvo para Castelein é o disco.
Não se deve permitir que a deformidade do disco se fixe (contratura), assim, tratamento precoce é imprescindível.
Colete de uso noturno é uma opção viável:
Melhor adesão
Melhor correção
Ritmo circadiano favorável