DO CONHECIMENTO ANATÔMICO (da fáscia) AO ESPORTE: COMO DIFERENTES MOVIMENTOS PODEM AFETAR DIFERENTES ASPECTOS DAS FÁSCIAS

Palestra realizada on line  por   Carla Stecco no Congresso Fascia in Movement and Sports de 10 a 12 de dezembro de 2020 /  Organização Universidade da Fáscia

Através do estudo da anatomia da fáscia se pode entender de que forma treiná-la. A fáscia é formada por tecido conjuntivo fibroso e tecido conjuntivo frouxo.

ANATOMIA

Pele e subcutâneo segundo Rouvière

É constituída por uma lâmina de tecido epitelial, a epiderme, e por uma membrana de tecido conjuntivo, a derme. A epiderme recobre a derme moldando-se a todas suas irregularidades e recobre todo o corpo.

Na maior parte de sua extensão a pele é forrada por três camadas:

– panículo adiposo constituído por lóbulos de gordura separados por traves conjuntivas. Superficialmente essas traves prendem-se à face profunda da derme, profundamente se confundem com a fáscia superficialis. (Nesse e no último congresso internacional de Fáscias ela foi denominada Aponeurose superficial)

– fáscia superficialis é membrana fibrosa de revestimento que envolve quase todo o corpo, limitando profundamente o panículo adiposo. Parece ser o resultado da reunião das traves do conjuntivo que delimitam o tecido adiposo.

– tecido celular subcutâneo encontra-se entre a fáscia superficialis e a aponeurose de revestimento muscular, constituído por lâminas perpendiculares e obliquas em todos os sentidos que se interpenetram delimitando entre si espaços conjuntivos. É um tecido frouxo que permite deslizamento entre a pele e o plano aponeurótico. Neste tecido caminham as principais ramificações vasculares e nervosas subcutâneas. 

Em algumas regiões – Glútea, plantar, centro da palma, a pele une-se diretamente à aponeurose através de uma única camada de tecido subcutâneo mais denso. A pele aderida à aponeurose não permite escorregamento. Aí não existe camada celular frouxa ou fáscia superficialis. (8)

A aponeurose profunda também tem uma continuidade em todo corpo e no congresso do ultimo ano ouvi que se une de forma indissociável à aponeurose de revestimento dos músculos. Bienfait a considerava a própria aponeurose de revestimento muscular que se desdobra para formar os nichos de contenção de cada musculo, constituindo uma estrutura única em todo o corpo.

 Essa aponeurose pode ser constituída por conjuntivo fibroso e frouxo. Esses elementos respondem de formas diferentes a carga e movimento. Temos que estar alertas sobre de que forma atuam para que se possa treiná-los de formas diferentes.

COMPONENTES FIBROSOS

Trato iliotibial é um conjunto de tecido conjuntivo fibroso conectando o joelho ao quadril, o que possibilita nossa posição em pé. Aqui o arranjo das fibras de colágeno se dispõem em um sentido dominante, o que pode ser constatado em um corte do tecido local. Estas fibras tem um papel importante no tensionamento da fáscia fazendo-a funcionar quase como um tendão.

Fáscia plantar – As fibras de colágeno estão arranjadas longitudinalmente de forma a transmitir a força entre retrope e antepé.

Respostas a estiramentos:

Em um estudo retiraram amostras de 1cm de largura por alguns centímetros  de comprimento da fáscia plantar de diferentes indivíduos, isolaram em amostras e testaram de acordo com  a direção principal das fibras de colágeno. Utilizaram um equipamento que permitia aplicar forças mecânicas de forma controlada o que permitiu verificar a resposta a diferentes estímulos

Os testes foram realizados em uma temperatura ambiente de 20º C com as amostras mantidas hidratadas (no futuro o experimento deve ser realizado a uma temperatura de 36º ). O aparelho impunha uma força de alongamento proximal-distal mantendo uma região livre de 10mm por 1seg, relaxando a seguir, novo alongamento de 1 seg e assim por diante. No primeiro estiramento houve um pico de alongamento maior que no segundo estiramento e assim os picos foram baixando até que a partir do sétimo estiramento os picos foram semelhantes. Isso significa que a fáscia necessita de alguns picos (6 a 7) de estiramento para se aquecer e organizar as fibras de colágeno dentro da fáscia e uma vez que essas fibras estejam alinhadas de acordo com a força aplicada atinge-se um platô e elas não mais se alteram.

Aspectos práticos:

– o aquecimento (os alongamentos repetidos mantidos por certo tempo) pode ter um papel nas fáscias permitindo que elas alcancem um novo estado de equilíbrio.

– o aquecimento reduz a resposta ao estresse da fáscia ao estiramento imposto

– depois do aquecimento as propriedades mecânicas da fáscia profunda permanecem constantes e ela não precisa de muito tempo de aquecimento. Uma vez atingido o equilíbrio ele permanece o mesmo.

PLASTICIDADE:

Em um segundo estudo Carla Stecco quis verificar se a fáscia poderia retornar a seu comprimento inicial uma vez tendo sido esticada. Então, depois de ter alongado as amostras algumas vezes elas eram deixadas em repouso alguns minutos e verificou-se que voltavam seu estado inicial. Repetiu-se os alongamentos uma segunda vez e de novo ela retornou ao comprimento inicial.

Isso significa que ela não é plástica, não é tão fácil modificar a estrutura fascial.

DISTENSIBILIDADE

Curva stress strain demonstra que ela pode deformar-se até 10 ou 12% de seu comprimento, quando entra em uma fase linear de deformação e depois a curva começa cair demonstrando que entre 12 e 15% de alongamento entra em uma zona de lesão e a partir de então as fibras de colágeno se rompem. Acima de 20% de deformação a fáscia é permanentemente danificada e não mais resiste a forças de tensão.

Em situação normal de relaxamento as fibras de colágeno estão onduladas, ao serem submetidas a uma força longitudinal elas se esticam até que, sem mais ondulações passam a transmitir força à distância.  Se o estresse a que for submetida for excessivo começará haver rompimento de fibras.

O tendão de Aquiles alonga-se linearmente sob estresse até cerca de 4%, suporta menos alongamento do que a fáscia e depois disso há lesão. O tendão serve só para a transmissão de força, a fáscia tem que ter uma capacidade de adaptação maior por estar envelopando músculos e precisar adaptar-se a variações de forma e não apenas transmitir força.

A curva de adaptação dos músculos é muito impressionante. Dependendo do músculo ele pode atingir até mais que 50% de alongamento.

Do livro Ciência da Flexibilidade de Michael J. Alter: “ O limite teórico do alongamento do sarcômero enquanto ainda mantem pelo menos uma ponte cruzada entre os filamentos de actina e miosina excede 50% de seu comprimento de repouso”.

Então ele pode alongar-se até essa porcentagem sem oferecer resistência. É o conjuntivo ao redor dele que limita o movimento e cria resistência.

Já o osso não tem praticamente nenhuma capacidade de adaptação à deformidade ou tensão

Então:

A fáscia é como uma mola. Enquanto não estiver completamente estirada uma pequena força é suficiente para alonga-la. Assim, quando a fáscia estiver alongada para que haja uma pequena deformidade é necessária uma grande força.

Possivelmente essa variação de deformação de 4% é fisiológica, é o que permite a variação de volume muscular durante sua contração.

Acima de 4% de deformação a fáscia torna-se rígida e nesse ponto está apta a transmitir força à distância.

Ela pode comportar-se como um tendão especialmente entre 4 e 10% de alongamento mas dificilmente atinge esse grau de tensão. Ela responde constantemente ao grau de tensionamento que o músculo que está abaixo dela impõe.

Em casos de entorse há uma questão muscular, mas a fáscia está também envolvida. Ela fica rígida antes do músculo.

Em outro estudo procurou determinar-se como se altera a tensão da fáscia quando é deixada sob tensão. Em 20 seg a tensão diminuiu 30%. Depois de 1min diminuiu 40%. Depois de deixada de 2 a 4 min sob tensão nada mais ocorreu. Então uma fáscia deixada sob tensão faz sua tensão interna decrescer até relaxar. O alongamento mantido mais que 1 min parece não ter mais nenhum efeito significativo na diminuição de tensão. Esse experimento foi feito em cadáver, mas se poderia deduzir que in vivo os efeitos de um alongamento depois de 40 a 60 seg. de alongamento não são significativos.

Com isso poderíamos considerar aumentar o tempo de tensão na aplicação das pompages. Bienfait recomendava 20seg.

O mesmo estudo foi realizado com a fáscia crural na qual se observam duas camadas com fibras de colágeno dispostas em diferentes direções, então é difícil decidir como fazer um alongamento nessa fáscia.

Foram dissecadas amostras da fáscia crural com 30 mm de comprimento, 0,5 mm de largura e 0,54mm de espessura na região anterior e 0,91 na região posterior. Alongou-se de forma transversal e depois longitudinal. Verificou-se que ocorreu o mesmo que com a fáscia plantar, mas observou-se que ao se alongar longitudinalmente ela torna-se rígida mais rapidamente, se for alongada transversalmente ela se revela mais adaptável, mais extensível.

Do ponto de vista clinico isso é importante, porque longitudinalmente ela é responsável por coordenar o movimento do calcanhar ao quadril. É importante que se estabeleça uma rigidez mais rapidamente. (pouca adaptabilidade para permitir transmissão de força). Já na direção transversal ela tem que ser mais adaptável. Porque toda vez que o músculo contrai ela tem que se adaptar alargando-se, para permitir a contração.

Mecanicamente a fáscia é então um tecido complicado de ser entendido e treinado. Deve receber estímulos em diversos sentidos espaciais.

TEMPO DE TERAPIA

O tempo de reposição da fibra de colágeno é de 300 a 500 dias. Portanto não se pode mudar uma estrutura fascial em duas semanas de treino. Um estímulo mecânico repetido adequado para remodelar o tecido fascial atuará fisiologicamente entre a atividade dos fibroblastos e a colagenase e será capaz de uma remodelagem da fáscia, mas para que se chegue a isso é necessário ao menos um ano de treino.

Carano  e Siciliani (1996) já demonstraram que

– Alongamento dos fibroblastos poderia aumentar a secreção de colagenase.

– Alongamento ou compressão propicia uma deformação imediata e proporcional dos fibroblastos, mas após 10 a 15 min a morfologia da célula readapta-se a um novo meio mecânico, causando menor ativação biológica. Por causa dessa rápida adaptação é importante que se dê estímulos variados.

A fáscia torna-se muito mais rígida nos idosos. Idade cria tecidos conjuntivos mais rígidos mais fortes e mais estáveis, embora menos flexíveis. As fibras musculares vão sendo substituídas por colágeno.

O tecido conjuntivo frouxo é abundante onde há mais deslizamento entre os músculos, É constituído de água, íons e glicosamninoglicanos em especial ácido hialurônico.

Ao se misturar com água o ácido hialuronico torna-se gelatinoso. Quanto mais viscoso mais atrito haverá entre as fáscias.

Quando a temperatura diminui a viscosidade aumenta, quando a temperatura aumenta a viscosidade diminui. Isso pode explicar o efeito de muitas terapias físicas nas quais aumento de temperatura (laser, etc) faz aquecimento geral e facilita mobilidade. Sentimos-nos rígidos ao nos expormos ao frio.

O ácido hialuronico demonstra condição estável em solução alcalina. Em solução ácida a viscosidade aumenta dramaticamente (Gatei 2005).Após exercícios extenuantes o ph muscular pode atingir valores de 6.60 com aumento de aproximadamente 20% na viscosidade do ácido hialuronico. Isso pode ser observado em pacientes com aumento da rigidez da fáscia.

O aumento da produção de ácido hialuronico após exercício é uma tentativa inicial de  aumentar a eficiência de escorregamento entre as superfícies fasciais (como o liquido sinovial nas articulações). Mas demonstrou-se que quando esse aumento é excessivo, a distancia entre as superfícies também aumenta. A viscosidade aumentada no tecido conjuntivo frouxo dentro da fáscia pode levar a diminuição do escorregamento entre as fibras colagenosas na fáscia profunda. Isso pode ser percebido pelos pacientes como aumento de rigidez.

O ácido hialuronico é tixotropico

Tixotropia -Fenômeno pelo qual certas substancias passam do estado gel par ao estado liquido. Carla Stecco utiliza o exemplo do vidro de catchup que quando fica algum tempo fechado apresenta o conteúdo mais denso e é difícil que escorregue para fora. Se for agitado o conteúdo torna-se mais líquido e escorre mais facilmente.   

O liquido sinovial também é tixotropico. Sua viscosidade diminui com um certo índice de cisalhamento, mas é resistente à pressão. Essa propriedade pode ser associada como elemento chave do tecido conjuntivo frouxo e explica porque imobilidade reduz escorregamento fascial e consequentemente a amplitude de movimento. Por outro lado, movimento e massagem podem reduzir a viscosidade e tornar o movimento mais fluido.

CONSEQUENCIAS:

Ao pensarmos na terapia do tecido fascial é necessário decidir se o alvo é o componente fibroso, quando é necessário estimular os fibroblastos aumentando a tensão da fáscia em determinadas direções. Se o alvo for o tecido conjuntivo frouxo precisamos pensar na temperatura, pH, hidratação, e movimento multidirecional.

 

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