MÚSCULO ALONGA?

MÚSCULO ALONGA?

Creio haver um erro de nomenclatura na anatomia clássica. Músculo deveria chamar estrutura músculo-fascial.

A fáscia dá a essa estrutura seu caráter elástico, é graças a ela que sua forma é mantida.

O tecido muscular dá à estrutura seu caráter contrátil e a fáscia transmite a força mecânica gerada pela contração dos sarcômeros, o que permite o movimento às alavancas ósseas.

Comprimento de repouso de um músculo é aquele que ele tem quando não contraído ou não alongado. Ao ser removido do corpo ele encurtará 10% do seu comprimento de repouso.  Esse é chamado comprimento de equilíbrio do músculo (1).

Essa constatação nos permite dizer que em posição anatômica, mesmo em decúbito, onde a ação da gravidade é mínima, os músculos estão sob alongamento ou sob tensão.  Posso usar uma figura de linguagem dizendo que a estrutura músculo-fascial  já é instalada em seu lugar ou in situ, como dizem os fisiologistas, sob alongamento.

No Simpósio Internacional de Fáscias (2) ouvi Markus Rossmann dizer, com muita razão,  que durante um movimento, o músculo se contrai e diminui seu comprimento enquanto o  antagonista aumenta o seu, mas ao retornar  à posição fundamental ambos os músculos retornarão  sempre ao mesmo comprimento. Nunca havia pensado dessa forma, mas tenho que concordar, é verdade.  Isso quer dizer que ele é capaz de alterar sua forma, mas não se alongar. Assim, o termo “alongamento “ talvez tenha que ser substituído no futuro. Ideia tentadora, quem sou eu para discordar? Mas gostaria de fazer algumas reflexões a respeito.

Vamos imaginar que uma bailarina com a minha altura inclina-se para frente facilmente e coloca as palmas das mãos no chão, com tíbias verticais, sem flexão de joelhos e com um fechamento de mais de 90º do ângulo coxofemoral.  Eu ao fazer o mesmo coloco a ponta dos dedos no chão e fecho apenas 90º o ângulo coxofemoral com um pouco de inclinação posterior das tíbias. Ora, se tivermos o mesmo comprimento de fêmur, seguramente o comprimento dos isquiotibiais dela será maior que o meu nessa posição. Como posso me referir a isso? Que ela desenvolveu uma flexibilidade maior que a minha? Ou que desenvolveu um “ potencial de alongamento” maior que o meu? No fundo, creio que é isso que queremos dizer ao falarmos simplesmente “alongamento”. Não queremos ficar mais altos (seria a única forma de alongarmos de verdade um músculo), queremos ter maior amplitude de movimento, sermos mais flexíveis.

Quanto ao tecido muscular, existem inúmeros trabalhos sobre a capacidade de adaptação dos músculos esqueléticos quando submetidos a diferentes graus de extensão ou de comprimento. Um dos trabalhos fundamentais para o entendimento desse comportamento foi publicado em 1972 por Tabary e colaboradores (3). Ao imobilizar por quatro semanas o músculo sóleo de gatos em posição de alongamento, observou-se um aumento de 20% dos sarcômeros em série. Ao imobilizar o mesmo músculo em encurtamento houve diminuição de 40% do numero de sarcômeros em série do mesmo músculo.  Nesse ultimo experimento, a boa notícia foi que quatro semanas após suspensão da imobilização esses músculos voltaram apresentar a mesma extensibilidade e numero de sarcômeros dos animais do grupo controle não imobilizados. Isso quer dizer que dentro da fibra muscular a sequencia dos sarcômeros que constituem  o elemento contrátil pode sim aumentar seu comprimento sob determinadas condições.

Ainda voltando ao exemplo da bailarina e eu. Consigo fechar  a articulação coxofemoral 90º ao me inclinar para frente, mas não mantenho minha perna elevada 90º contra a gravidade enquanto a bailarina pode exercer a amplitude total de flexão de seu quadril  elevando seu membro inferior contra a ação da gravidade, provavelmente porque seu treino em alongamento desenvolveu um maior numero de  sarcômeros,  inclusive em série, o que confere mais força em potencial e os coloca em um comprimento ideal para o desenvolvimento de força isométrica mesmo quando o membro inferior está em posição de alongamento das fibras musculares

E ENTÃO, MÚSCULO ALONGA?

SE NÃO ALONGA ELE TENTA MUUUUUITO.

 

Referencias:

  1. Garamvolgyi, N. (1971) The functional morphology of muscle. In K.Laki (Ed.) Contractile proteins and muscle (pp. 1-96). New York: marcel Dekker
  2. Palestra de Markus Rossmann no Simposio Internacional de Fáscias em S Paulo em 01 e 02 de Novembro 2019
  3. Tabary et col (1972) Physiological and structural changes in the cat’s soleus muscle due to immobilization at diferent lenghts by plaster casts. Journal of physiology (London) 224 (1), 231-244.

6 comentários sobre “MÚSCULO ALONGA?

  1. Ótimo texto!
    A primeira vez que ouvi um vídeo onde Markus Rossmann, trazia esta informação, fiquei muito inquieta. Pensei exatamente em.nossos estudos, no aumento de sarcomeros e aí para onde vai tudo isto?
    Valeu a reflexão, vamos aguardar os próximos capítulos desta e novas pesquisas. Ana

  2. Foi a primeira vez que ouvi sobre o assunto. Intrigante. Ainda bem que temos vc para não deixar nos acomodarmos e partir para a reflexão. Excelente texto Ângela. Vc sempre contribuindo !

  3. Adorei seu texto Angela. É inspirador ver pessoas de diversas linhas de trabalho corporal estarem refletindo sobre novas nomenclaturas, novos olhares, novos raciocínios e com certeza quem tem a ganhar, somos nós seus alunos e que podemos contemplar mais uma transformação em nossa área junto à pessoas como vc. Na verdade, vejo que novas respostas a questões inquietantes.

  4. Ótima reflexão Ângela! Nestes tempos em que as hipóteses ganham validação ou não pelas evidências científicas, vamos ver o que há além da pesquisa com os gatinhos e trazer essa questão para uma boa discussão.

  5. Li o artigo pensando num amigo que vc tambem conhece.Ele se queixa de sempre ter sido encurtado e de fazer exercicios todos os dias,especialmente as ditas “aulas de alongamento”.Diz ele que se sente muito bem ao termino dos exercicios mas ,poucas horas depois,percebe que está encurtado como antes…Alguem com experiencia nas massagens profundas falou algo de especial sobre o assunto???Beijinhos.

    • Oi Fátima, obrigada pelo contato
      Não houve nenhuma abordagem sobre esse assunto em especial. Tive nos bastidores contato com um dos palestrantes que tem uma leitura de medicina tradicional chinesa. Faz um tipo de avaliação que mede os fluxos de energia do corpo através de procedimentos com as quais não tenho nenhuma familiaridade, mas ele diz que sempre que um trabalho corporal causa um efeito benéfico que não se mantem, deve haver um desequilíbrio desse fluxo energético, que pode ter várias causas, inclusive desvios posturais. Levando em em conta o pouquinho que sei, será que esse amigo tem desvios posturais importantes que deveriam ser tratados, antes de pensar em apenas alongar, sem um objetivo mais preciso?
      beijo

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