NÃO JOGUE FORA A BENGALA

 

Para a redação desse texto contei com a preciosa colaboração de dois amigos e clientes queridos, profissionais da Escola Politécnica da USP Orlando Strambi  e Ricardo Strambi. A eles muitos agradecimentos.

 

O que se segue é retirado de um artigo do The Journal of bone and joint surgery (1). O autor, como eu, era fã de bengala. Aliás, foi ele quem me ensinou a vê-la como mais um recurso terapêutico para qualquer afecção de membro inferior, quando poupar as cartilagens articulares ou impedir uma marcha claudicante pode resolver tantos outros problemas que seguramente se seguirão se esses cuidados não forem adotados.

Os esquemas biomecânicos que se seguem o autor retirou de uma famosa monografia de 1935 de Friedrich Pauwels (2). Se você, querido colega, é daqueles que desprezam bibliografias antigas, me permita lembrar uma ainda mais antiga (de 200 a 500 anos antes de Cristo), mas sempre atual, de um sábio que diz “ O que foi voltará a ser, o que aconteceu, ocorrerá de novo, o que foi feito se fará outra vez, não existe nada de novo debaixo do sol” (3)

Fig 1

Representação do peso corporal repartido entre dois quadris normais. A força estática sobre cada um é de metade do peso do tronco, cabeça e membros superiores, que corresponde a menos de 1/3 do peso total do corpo. Músculos em torno podem estar relaxados, o que não impõe nenhuma força a mais sobre as articulações dos quadris.

 

 

Fig 2

O mesmo indivíduo da fig 1 elevou a perna esquerda durante a fase de balanceio da marcha. O tronco e pelve não se moveram. O peso da perna esquerda se soma ao do tronco, cabeça e membros superiores. Sobre a cabeça do fêmur direito junta-se esse peso suplementar mais a força desenvolvida pelos abdutores do quadril direito, momentaneamente necessária para manter o equilíbrio da pelve enquanto o membro inferior esquerdo estiver elevado.  Os músculos abdutores do quadril estacionário à direita têm que puxar para baixo a asa ilíaca suficientemente para manter a pelve estável. A quantidade de força desenvolvida pelos músculos abdutores e a quantidade de força representada pelo peso do corpo exercida para baixo no ponto C dependem do comprimento relativo das alavancas.

Fig 3

Vamos imaginar essa gangorra com fulcro (o ponto de apoio) no centro. De um lado a força M (representação da força que deve ser desenvolvida pelos abdutores da perna de apoio no momento de apoio unipodal da marcha), do outro lado a força K (representação do peso do corpo concentrado no centro de gravidade. Se a distância entre o ponto de apoio e K, entre o ponto de apoio e M fosse a mesma, ambas as forças deveriam ser iguais para se equilibrar. Seria como duas crianças sentadas em posições equidistantes do centro de uma gangorra. Se tiverem o mesmo peso a gangorra se equilibra.

Os momentos de força serão semelhantes. Isso ,  M vezes a distância entre o ponto B e o centro (que vamos chamar de b) que será igual à K vezes a distância entre o ponto C e o centro (que vamos chamar de c): M.b=K.c

FIg 4

Agora o peso M está mais próximo do eixo da gangorra, de tal forma que a distância entre B e o eixo central (vamos chama-la de b)  é três vezes menor que a distância entre C e o eixo central (vamos denomina-la c). O momento de forças para que haja equilíbrio e a gangorra não oscile deve ser igual. Então:

M.b=K.c

Como c=3.b podemos escrever a equação

M.b=K.3.b

M=K.3.b/b

M=K.3

Então a força M deve ser aproximadamente três vezes maior que K para que o sistema permaneça em equilíbrio.

Vamos transpor a situação discutida nas figuras anteriores para o quadril:

   

Fig 3                                                                                      Fig 1

A situação discutida na figura 3 ilustra a carga colocada sobre as duas cabeças femorais com ambos os pés apoiados no chão como na figura 4. Metade do peso de tronco cabeça e membros superiores estão igualmente divididos sobre cada cabeça femoral e sem ação da musculara de adutores se somando a essa carga.

   

Fig 4                                                                                     Fig 2

A situação discutida na figura 4 ilustra a carga colocada sobre a cabeça femoral quando um pé (no caso da fig 2 o esquerdo) é elevado do chão e o peso de tronco, cabeça, membros superiores e membro inferior em balanceio na marcha deve ser sustentado pela cabeça femoral do membro inferior em apoio. A essa carga se juntará aquela resultante da contração dos abdutores que se encontram do lado externo ao ponto O (centro da cabeça femoral ) que tracionam o ilíaco para baixo, impedindo a queda da pelve para o lado oposto ao membro inferior de apoio. Como em média a proporção da distancia entre ponto O e B é três vezes menor que a distância entre o ponto O e a linha de projeção do centro de gravidade C, se deduz que a força a ser desenvolvida pelos abdutores deve ser igual a três vezes o peso corporal projetado a partir do centro de gravidade do corpo (peso total menos o peso do membro inferior apoiado no chão). A cabeça femoral deve suportar a cada passo aproximadamente o equivalente a quatro vezes o peso corporal (descontado o peso do membro inferior de apoio). È um valor aproximado devido à direção dos vetores K e M ilustrados na figura 2, mas essa precisão não é importante para nosso raciocínio que se faz aqui por aproximações.

Fig 5 Nesse esquema coloquei a linha central que deve passar pelo centro de gravidade do corpo no centro e não ligeiramente á esquerda como deveria (segundo o que vemos na fig 2 mais precisa). Porém as distancias proporcionais estão mantidas.

Vamos imaginar a coxofemoral direita dessa pelve em apoio unipodal à direita. Vamos considerar, proporcionalmente, a distância entre trocanter maior D e centro da cabeça femoral como sendo aproximadamente 1, a distancia entre o centro da cabeça femoral e a projeção do centro de gravidade (representada pela vertical ) 3, a distância entre a projeção do centro de gravidade e o centro da cabeça femoral esquerda  3, a distancia entre a cabeça femoral esquerda e o trocanter maior esquerdo 1. Se este individuo ao elevar o membro inferior esquerdo projetar um peso de 70kg a partir do centro de gravidade, os abdutores à direita desenvolverão uma força igual a 210 Kg e a cabeça femoral deverá suportar uma carga igual a 280 kg. Segundo o que já analisamos anteriormente.

Força para baixo é!, força para cima é Î.

!M__O______!K

M=3xK=3×70=210, portanto a resultante R sobre a cabeça femoral no ponto O é aproximadamente M+K=280.

 

Em seguida vamos supor que o apoio sobre uma bengala, colocada no mesmo nível do trocanter maior esquerdo esteja situada em relação ao centro da cabeça femoral esquerda a uma distancia igual a 3 (mais ou menos a distancia entre a projeção do centro de gravidade e o centro da cabeça femoral). Suponhamos também um apoio de 10Kg sobre a bengala.

Com bengala:

!M__O______!K______________ÎF (F é a força da bengala)

M=(3xK) – (10xF) = (3×70) – (10.10) = 210-100 = 110,

Força abdutora M é igual a 3 vezes o peso K menos o momento da força F da bengala que é igual à força aplicada sobre a bengala (10Kg) multiplicado pelo braço de alavanca 10, o que leva a uma resultante de 110. Portanto a resultante aplicada sobre a cabeça femoral pode diminuir: ( 280-110=170) de 280 passa a ser 170.

Colocada do lado oposto à coxofemoral que apresenta problema, a bengala trabalha com um longo braço de alavanca de tal forma que pouco apoio sobre ela alivia muito o apoio sobre o quadril lesado.  O autor mostra um estudo com diversos valores de apoio sobre a bengala em um individuo cujo momento de força sobre a cabeça femoral sem o uso dela resulta em 172 Kg e quanto isso seria reduzido com diferentes intensidades de apoio aplicadas sobre a bengala.

Fig. 6

Supondo resultante R sobre a cabeça femoral sem bengala 173.2Kg, observe o que ocorre com diferentes forças transferidas  sobre a bengala:

           Resultante   Apoio sobre a bengala Apoio sobre a cabeça femoral
                   R                       0                172.2 Kg
                   1                       9.0 Kg                  99.0 Kg
                   2                     14.8 Kg                  50.85Kg
                   3                     17.1 Kg                  29.7  Kg

 

REFERÊNCIAS

  1. Blount, W. P: Don’t throw away the cane The journal of bone and joint surgery 38-A no. 3, june 1956
  2. Pauwels, F.: Der Schhenkelsbruch. Ein mechanisches Problem. Stuttgart, Ferdinand Enke, 1935
  3. Eclesiastes 1:9

 

2 comentários sobre “NÃO JOGUE FORA A BENGALA

  1. Ângela que maravilha de artigo. Uma aula de biomecânica sensacional. Também sou fã de uma bengala, assim como sou adepta de compensar discrepância de MI, situação que muitos médicos acha desnecessário alegando que o corpo encontra suas compensações.
    Obrigada por compartilhar suas histórias e causos. Vc é um compêndio.

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