MÉZIÈRES E AS CADEIAS MUSCULARES

Françoise Mézières foi uma fisioterapeuta francesa que inaugurou para o mundo da fisioterapia o conceito de “cadeia muscular” através da observação crítica dos procedimentos de cinesioterapia praticados nos anos 40 do século passado. Distinguiu grupos musculares onde as tensões são mais importantes.  Considerou que a cadeia onde essa retração é mais marcante é a posterior do tronco e dos membros inferiores.

Encontrei uma descrição de como ela fez pela primeira vez essa constatação em 1947 ao atender uma cliente de cerca de 40 anos, longilínea, alta, magra. A queixa que a levou ao médico era uma dorsalgia. Ele havia recomendado um colete rígido até o pescoço. Dois anos depois ela retornou ao médico com a mesma queixa e com dificuldade de elevar os braços por ter desenvolvido uma periartrite de ambos os ombros. Só então o ortopedista sugeriu ginástica e a cliente acabou em suas mãos. Ao tirar o colete Mézières notou equimososes sobre os ombros, sobre os quadris, ferimento em sete apófises espinhosas e nos ângulos inferiores das escápulas. Tentou endireitar as costas, fazendo os movimentos com os quais estava habituada trabalhar, mas era impossível.

Pediu então que a cliente se deitasse de costas no chão. Tentou nessa posição levar ambos os ombros para trás, apareceu uma imensa hiperlordose, sendo que em pé apreentava apenas uma hipercifose. Deu-se conta de que para fazer desaparecer a hipercifose era necessário instalar uma hiperlordose. Não seria ideal. Então fez o óbvio, pediu que ela dobrasse os joelhos para obter uma báscula posterior da bacia, apoiar a lombar e corrigir a hiperlordose, enquanto os ombros eram mantidos contra o chão. Nesse momento a cabeça fez uma báscula posterior provocando uma hiperlordose cervical que era impossível corrigir.

Isso não fazia sentido. Até então se acreditava que a hipercifose existia por falta de força na região dorsal, onde os músculos seriam longos, fracos e flexíveis. Aquela cliente, ao contrário, tinha músculos muito rígidos, porque ao alonga-los em um ponto ele se encurtava em outro. E o que se fazia até então em fisioterapia para corrigir a hipercifose era trabalhar localmente, endireitando a coluna torácica e “estufando” o peito. Mas ali toda musculatura posterior parecia comportar-se como se fosse um só músculo. Tudo parecia indicar que a cliente deveria ser tratada como se tivesse uma única lordose total da região posterior. Resolveu continuar a pesquisar, talvez aquela cliente fosse exceção. Durante dois anos testou todos os clientes que conseguiu tratar e a regra foi confirmada: só existem lordoses.

A primeira cliente foi intuitivamente tratada como se tivesse uma lordose. A hipercifose e a dorsalgia foi esquecida. O queixo em direção ao peito prevenia a formação da hiperlordose cervical, as pernas elevadas eliminavam a lordose lombar, os ombros eram mantidos para trás.  E assim organizou as sessões de fisioterapia durante oito meses, uma vez por semana, o que permitiu que a cliente tirasse o colete, elevasse os braços e voltasse a trabalhar. Chegaram as férias e Mézières pediu que no retorno ela voltasse para verificarem como se sentia sem tratamento durante tantas semanas. Ela não voltou mais. Dois anos depois enviou uma amiga para um atendimento.  Mezières quis saber por que ela não mais dera noticias. A amiga respondeu que provavelmente por estar muito bem. Quinze dias depois a primeira cliente a quem devia sua descoberta veio visita-la com um buquê de flores dizendo que sua vida voltara ao normal e o efeito do tratamento forma permanente.

imagem retirada de Le Manuel du Méziériste de Godelieve D. Struyf, Éditions Frison-Roche, Paris, 1995

 

A conclusão dessa primeira experiência foi: como o alongamento de uma curva vertebral causou a exacerbação de outra curva, todo alongamento parcial da musculatura posterior leva ao encurtamento do conjunto dessa musculatura.

Ao cabo de dois anos, em 1949, publicou um pequeno livro Révolution en gymnastique orthopédique que não despertou grande interesse entre seus pares.

Mas, aos poucos, “de boca a orelha”, como dizem os franceses, a eficiência do trabalho difundiu-se e ela acabou por organizar estágios de formação, dar palestras, continuar como terapeuta e abrir caminho para muitos profissionais. Influenciou outras técnicas, e se hoje entendemos a “globalidade” da função motora, a largada para essa teoria foi dada por ela.

Em outro pequeno livro publicado em 1984, quase ao final da carreira, “ Originalité de la Méthode Mézières” ela enuncia as seis leis formuladas ao longo da vida e que presidem seu método:

  1. Os músculos posteriores comportam-se como um músculo único. Poliarticulares, formam uma cadeia muscular.
  2. Estes músculos são muito tônicos e muito curtos. A cadeia posterior constantemente solicitada se encurta. Essa tendência se acentua com a idade e a retração é fatal.
  3. Toda ação localizada, seja de alongamento ou encurtamento, provoca imediatamente um encurtamento do conjunto do sistema e agrava a deformação ou o estado patológico. Toda modificação de comprimento de um dos elementos da cadeia produz tração sobre as inserções proximais do elemento seguinte.
  4. Toda oposição a esse encurtamento provoca látero-flexão e rotação da coluna vertebral e dos membros. Isso porque os elementos da cadeia têm varias possibilidades de ação. Toda correção parcial de uma deformidade leva a outra deformidade.
  5. A rotação dos membros devida à hipertonia das cadeias é sempre para dentro. A cadeia anterior do membro superior comporta os pronadores e a cadeia posterior do membro inferior contem potentes rotadores internos.
  6. Todo alongamento, de-torção, dor, esforço, bloqueiam a respiração em inspiração. Por essa razão toda atitude corretiva da hipertonia das cadeias deve ser aplicada em expiração. Para se combater todas as compensações, até a última, é necessário “suspirar”. Toda correção é feita em expiração.

No mesmo texto ela enumera tudo que o método não é:

  1. Meu método não é “suave”.  Não é brutal, nem por isso deixa de ser árduo no início de sua aplicação.
  2. Meu método não é “global”. Visa o tensionamento integral das cadeias. Se, para muitos, a palavra “global” exprime a totalidade do soma e da psique, meu método que se destina ao físico não é global…Evito me envolver em outras disciplinas que não a minha, minhas competências não são universais.
  3. Meu método não tem nada em comum com Yoga ou qualquer outro método. Yoga é um exercício religioso, complementar às preces. Fazer dela uma ginástica demonstra a impossibilidade, para os ocidentais, de se unir à mentalidade oriental.
  4. Minha técnica poderia ser uma técnica própria à normalização da forma (do corpo) através da flexibilização das cadeias musculares e de contrações isométricas, o que leva à necessidade de um parangon* morfológico.

* Termo francês em desuso, emprestado do espanhol que quer dizer modelo, tipo.

Referência:

Le Manuel du Méziériste de Godelieve D. Struyf, Éditions Frison-Roche, Paris, 1995

3 comentários sobre “MÉZIÈRES E AS CADEIAS MUSCULARES

  1. Ângela como sou grata por TD o que vc nos ensina. Vc é uma enciclopédia de membros. Qto estudo , qtos ” causos” e qtas histórias vc tem a nos passar. Madame Mèzières faz parte dos meus estudos há mais de 20 anos ,mas não tinha nenhum conhecimento sobre vida, sei trabalho. Fiquei encantada . Adorei como ela expõe seu método. Adoraria ler os livros citados. MT obrigada.

    • Eu também adoraria. Tenho vários trechos que encontrei em outras publicações, como esse que coloquei na segunda parte do post. Mas vamos ver se consigo resgatar mais coisas. Tenho um “olheiro” em Paris procurando por mais textos. Quem sabe?

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